"Esperamos que um Bom Samaritano venha nos ajudar..."
Essa frase é repetida cotidianamente nas comunidades com os quais temos trabalhado nos últimos meses. A expectativa de que Deus lhes envie alguém que tipifique o Bom Samaritano narrado na parábola contada por Jesus (Lucas 10:20-37), expressa bem os efeitos que uma Cultura de Miséria produz, mesmo na vida daqueles que professam sua fé em Cristo e Seu Evangelho. Afinal, eles são os "caídos à beira do caminho", e o nós o "Bom Samaritano".
O "Bom Samaritanismo" é geralmente compreendido como a prática da caridade - interpretação comumente aceita para essa passagem bíblica. É como a lemos! Porém, ao longo desses mesmos dias, imergindo em uma reflexão criteriosa da parábola, especialmente do seu contexto (texto fora do contexto serve de pretexto!), fui impactado por algumas verdades didáticas para o nosso ministério missionário entre comunidades de alta vulnerabilidade da Zona Metropolitana da Capital Haitiana, as quais compartilho com você.
Reino de Deus não é religiosidade!
A parábola do Bom Samaritano é uma resposta a um Doutor da Lei que buscava por Jesus à prova: "Quem é o meu próximo?" - perguntou-lhe o Doutor. O mesmo que a pouco perguntara o Mestre: "o que é preciso para herdar a vida eterna?". Esse é o pano de fundo, o contexto geral, da parábola: um homem conhecedor da Lei, da Palavra, mas que não a praticava; alguém que procurava algo para justificar sua religiosidade vazia de sentido e de propósito eternos; alguém que vai a Jesus, mas com intensão de garantir um lugar no céu - o não ir para o inferno após a morte. Jesus contraria suas intensões religiosas e metafísicas (pós-morte), apresentando-lhe um exemplo da sua práxis, a realidade prática do Seu Evangelho e da mensagem da Salvação. "Respondeu-lhe Jesus: VÁ e FAÇA o mesmo!".
Paulo descreve que o Reino de Deus "não é nem comida, nem bebida, mas, a paz, a justiça e a alegria no Espírito Santo" (Rom 14.17), e ainda "edificação mútua" (v. 19). Tiago, em sua epístola, ao tratar sobre a inoperância da religiosidade e a prática da fé, faz um trocadilho afirmando que "a religião que Deus, o nosso Pai, aceita como pura e imaculada é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades e não se deixar corromper pelo mundo" (Tg 1:22-27). E ainda, "se vocês de fato obedecerem à lei do Reino encontrada na Escritura que diz: 'Ame o seu próximo como a si mesmo', estarão agindo corretamente". (Tg 2.8).
Sendo a mensagem central de Jesus, o Reino de Deus, a Parábola do Bom Samaritano me saltou aos olhos como uma mensagem Real, um ensino sobre o que é prioridade (Mateus 6.33) à vida humana: a valorização do outro em detrimento das minhas próprias vontades, a lei da liberdade que se aplica no amor ao próximo, no negar a si mesmo, no, se preciso for, dar a minha vida em favor do outro. E isso, não é caridade! É amor!
Compaixão não é Caridade!
Fez-me rir perceber que, intencionalmente, Jesus mudou o sujeito da questão: quem é o meu próximo foi substituído por quem foi o próximo daquele homem?! Note-se que, para Jesus, esse era o ponto central do diálogo: você age como aquele Samaritano? Assim, ser Samaritano é ser bom... para o outro, é servir ao próximo. E aqui, me lembrei que há dois conceitos sobre servir: um comum e outro bíblico. Comumente, servir não é algo bom. É pesaroso. É um fardo. Esse é o dia-a-dia da comunidade: cada um por si e Deus por todos! Biblicamente, servir é um mandamento, e todo cristão é comissionado para servir, o que nos aponta para o exemplo do Bom Samaritano, que serviu aquele homem caído à beira do caminho. Servir, para Cristo, é ajudar ao próximo. Assim, crescemos vendo e aprendendo que servir é um pesar, e quando nos convertemos, aprendemos que devemos ajudar. Daí, é muito fácil confundirmos os dois conceitos, tendo um como ideal e outro como real. Vou exemplificar para ficar mais fácil o que estou tentando compartilhar:
Como na maioria dos grandes centros urbanos no Brasil, aqui na Capital do Haiti também há meninos que vivem nos semáforos pedindo um real, um dólar, alguns gourdes, para matar a fome, a sede e terem o que vestir. Eles vem até a janela do carro, estendem a mão e dizem: - Hei, moço, me dá um dólar! Me ajuda que estou com fome! Agora, imagina se a cada hora, 10 cristãos "bons samaritanos" decidem ajudar o garoto, e lhe dão R$ 1,00. A cada hora ele recebe R$ 10,00. Em uma jornada de 10 horas (das 8h às 18h), aquele garoto receberá R$ 100,00, e em 30 dias, R$ 3.000,00. Porém, um belo dia, um Bom Samaritano decide parar seu carro, conversar com o garoto, ouvir os porquês de estar ali, e lhe oferecer uma nova vida: casa, roupa, comida, escola e TRABALHO, para que ele não precise mais pedir ajuda. Seja sincero, e responda: aquele garoto iria mesmo sair da rua, de onde tira 3 mil reais por mês, para ir à escola e ter um "primeiro emprego" ou ser um "jovem aprendiz", recebendo R$ 987,00 ? A conclusão é que aquele R$ 1,00 não ajudou o garoto. Pelo contrário, reforçou nele a cultura de pedinte e dependente do dinheiro alheio. Aquele foi um real de caridade, mas, não de amor!
Mateus registra que Jesus se utilizava de um tripé em favor das gentes aflitas e exaustas como ovelhas sem pastor. Ele via, sentia e agia em favor de pessoas! (Mt. 9:35-10:1). A compaixão é ponto central na parábola do Bom Samaritano, mas, as ações que ele empreendeu não foram coordenados por ela, mas, pela Sabedoria.
É a Sabedoria que precisa coordenar nossas ações no Reino!
É nítido que aquele Samaritano não agiu a ermo. A trilha onde ele estava era conhecida pelas emboscadas e ataques violentos, à semelhança do sofrido por aquele homem caído à beira do caminho. Os motivos de eles terem escolhido passar por ali não são o foco da mensagem, mas, é certo que a sequência das atitudes do Samaritano só comprovam que ele não agiu pela emoção, mas, sua bondade estava associada à sabedoria que o fez reconhecidamente bom, e não mais um na estatística daqueles saltimbancos. 1º) Aproximou-se; 2º) Enfaixou-lhes as feridas; 3º) Untou com olho e vinho; 4º) Colocou-o sobre sua montaria; 5º) O levou à hospedaria; 6º) Cuidou dele. Estes passos foram mais que suficientes para me mostrar que aquele Samaritano, cheio de compaixão, agiu com toda a sabedoria. Ele analisou o cenário para ver se não era uma emboscada. Ao constatar a gravidade do problema, tratou logo de remover, com cuidado e presteza (enfaixou e untou são primeiros socorros emergenciais), levando-o e indo para um lugar seguro e estável onde pudesse, enfim, cuidar daquele homem.
O foco do Reino não mudou, mas, ajudar por ajudar é religiosidade! Essa mesma reflexão tem me levado à compreender a profundidade do sermão profético de Jesus, onde a mensagem sobre "tive fome e me deste de comer", "tive sede e me deste de beber", "estava nu e me vestiste", "preso e foste me visitar", vindas de Jesus (e que serão proferidas naquele último e grande dia por Ele mesmo!), não poderia ser uma mensagem para a prática da caridade, como que nos permitindo justificar-nos (à semelhança do doutor da Lei, como retratado por Lucas: "tentando justificar-se..."):
- Senhor, quando te vi com fome, te dei um prato de comida - mesmo sabendo que no dia seguinte você sentiria fome novamente...Os resultados das nossas ações podem indicar nossas verdadeiras intensões!
- Senhor, quando te vi com sede, te dei um água - embora no dia seguinte você sentiria sede novamente...
- Senhor, quando soube que estava preso te visitei - embora nos dias seguintes você continuaria sozinho, e quando saiu da prisão não teve quem o reinserisse na família e na sociedade...
- Senhor, quando você estava doente, eu te visitei - embora o seu tratamento tenha se complicado, ficado caro, e você não tenha tido meios para se reestabelecer e voltar à vida...
Quando o Reino de Deus chega, há promoção da justiça em todas as suas dimensões, da paz no homem e entre todos os homens, da alegria que emana do e no Espírito, e do desenvolvimento comunitário (na linguagem paulina: edificação mútua). E me parece que foi isso que aquele Samaritano promoveu na vida daquele que estava caído à beira do caminho, mas, reviveu! Penso que por isso mesmo, Jesus, o Bom Mestre, o usou como exemplo, afirmando também a nós hoje: VÁ E FAÇA O MESMO!